SOBRE A MORTE DAS FORMIGAS E O SILÊNCIO DAS ESTRELAS
Se acredito em amor eterno, felicidade eterna, eternidade qualquer? Não: não acredito em vida eterna, então como botaria fé na possibilidade de que qualquer fruto da vida, mesmo os mais suculentos, possa durar para sempre? Não apodrecem todos os frutos da terra quando não os comemos quando maduros? Não apodrecerei também eu, quando for minha hora de ser rango na impiedosa e inescapável cadeia alimentar? Me enxergo como algo transitório, que desconhece o tamanho do tempo que lhe resta, mas que sabe que, ainda que a hora seja incerta, a morte é certa. E não será justamente por isso – por este desconhecimento radical, esta fragilidade perene, esta obrigação de viver em meio a um cosmos que somos incapazes de compreender, isto de tatear e cambalear num escuro semelhante ao imenso negro que existe entre as estrelas… – não é justamente por todas as chagas da condição mortal que nos é preciso procurar a força na união? O amor é uma invenção de seres que morrem. Se não morréssemos, se não fôssemos sofridos e tateantes, se não aspirássemos por êxtases terrenos debaixo das estrelas distantes, por que teríamos cultivado esta, a mais bela árvore do jardim terrestre? Não vejo pecado algum em morder a maçã, e os padres que se danem com seus pecados originais e penitências! Não conheço outras alegrias que não as alegrias da carne, e mesmo o que chamam de “espírito” me parece ser um epifenômeno da matéria que me constitui. Acredito que Deus não passa de filho do córtex e delírio do coração e que, se existe uma eternidade, é da matéria-dançante-movente-fluinte, esse imenso mistério. E acho que há imensa felicidade e frêmito e trêmulo pavor e amaravilhamento e falta de fôlego e muito mais na contemplação assombrada, cheia de espanto, incompreensão e ânsia, do imenso Mistério da Matéria – o que chamamos de Universo, como se fosse possível chamá-lo de algo, e como se uma mísera palavra, um pálido conceito, pudesse dar conta de se referir a esse… inefável indizível irrotulável imenso mistério.
Acredito que sou efêmero em meio ao devir eterno, contemporâneo de um presente sempre-presente e sempre-mutante, parte da natureza, e que só vive através dos intercâmbios com ela. Não acredito em minha independência, mas não chamo de Deus aquilo de que dependo. Não chamo de Deus o ar que entra por minhas narinas e enche meus pulmões, nem o sangue que não cessa de correr por minhas artérias e veias, propulsionado por um infatigável Tambourine Man. Se este baterista que trago no tórax falhar na batida, se cansar de alimentar a vida com sua propulsão rítmica, se a percussão visceral pifar, apaga-se o mundo para mim.
Mas e daí? Não me considero coisa tão grande que, se destruída, vá causar um grande mal, fazer uma grande falta. Sei muito bem que vou morrer e que, se for inverno, a primavera há de vir, cheia de flores que não terei olhos para ver. Sei que meu desaparecimento não muda muita coisa na imensidão do espaço e do tempo.
Quando criança, quando eu exercitava meus sadismos de perverso polimorfo pisando em formigas e aranhas, me surpreendia com a facilidade que era infligir a morte. Mas o que mais me chocava era a impassibilidade serena com o que o universo parecia receber os meus golpes. Ninguém me punia por matar insetos. Nenhum buraco nas nuvens se abria para a manifestação furiosa de um deus punitivo, surgido para me dar umas chineladas na bunda pela travessura.
Ao invés de se unirem em rebelião contra mim, gratuito carrasco de formigas, as bichinhas fugiam espavoridas, com um pavor absoluto. Era um salve-se-quem-puder que nada tinha de deus-nos-acuda. Pois desde pimpolho sou incapaz de crer que as formigas acreditam em deus, muito menos num Deus único. Se acreditassem, seria num deus-inseto, com antenas e amarronzado. Pediriam a ele um Paraíso todo feito de açúcar e, obviamente, sem crianças. Quão absurdo deve parecer o mundo para as formigas que, inconscientemente camusianas, vivem sem jamais compreender os massacres tremendos que as solas dos sapatos dos humanos infligem à sua amaldiçoada espécie. Mas a criança que eu era, assassina de formigas, devaneava, já com um germe de angústia, que a trivialidade da morte dos insetos podia significar algo mais grave, mais terrível, que eu nem ousava olhar nos olhos… a trivialidade de toda morte, inclusive a minha.
Não, não, não: os céus assistiam impassíveis aos meus assassinatos, tal como fizeram durante o Holocausto, a Inquisição, a extinção dos dinossauros. Desde criança eu percebi, sem precisar pensar ou raciocinar, que os céus não se importavam. E que justamente por isso tivemos que inventar um Deus, ou seja, uma entidade que se importa. Pois é quase insuportável estar debaixo da indiferença dos céus. A solidão é quase esmagadora. O desejo de ter um Pai benévolo é quase irresistível. Algo nas nossas profundezas se revolta contra a suspeita (plenamente justificada) de que o universo não se importa com nosso destino, não dá a mínima se estamos vivos ou mortos. E desta angústia jorram os deuses.
Acredito que foi a angústia o útero de todos os deuses. E se tantos prosseguem crendo em deuses, é pois não conseguimos curar a nossa angústia, ainda que tenham sido inventados Prozacs e pornografias, televisões e puteiros.
Queremos fazer um grande drama, mas e se for verdade que os homens morrem exatamente como as moscas? Sim, eu sei, pernilongos jamais seriam capazes dos monólogos de Hamlet. É bem mais simples o falecimento das lesmas em relação à morte de Ivan Ilitch. Mas… o que eu suspeito, com medo e aflição, mas ao mesmo tempo com a sensação de que pode haver nisso algum alívio e conforto, é que o universo acolhe a morte de qualquer ser vivo como algo que não merece uma lágrima. Nenhuma morte afeta o Universo. Nada se subtrai dele pois, como Lucrécio ensina, não somente nada pode surgir do nada como nada pode retornar ao nada.
A morte não é uma nadificação, mas uma dissolução. Todo o material que constituía o vivo, quando este morre, é reaproveitado. As partes constituintes prosseguem sendo isto mesmo: partes constituintes. Seguem em novas uniões, novos conjuntos. E assim o Universo dança, dança sem parar, como que inebriado pela música gerada pelos astros que bailam pelo salão do cosmos, dança como se tudo existisse somente para isso, para dançar, como Shiva, em sempiterna pulsação. Se a música é uma arte que tanto me emociona talvez seja por isso… pois ela pulsa e pulsa e pulsa, incapaz de permanecer estática, obrigada ao dinamismo, e nisso reflete o nosso Universo: irrequieto, fluido e no qual a única constante é a mudança e a única eternidade é o fluxo.
Publicado em: 07/05/11
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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